Novela (que podia ser mexicana) com um número infindável de episódios e protagonistas a mais, vendida em pacotes económicos aos países do leste europeu. Enredo muito intrincado, malfeitores qb, doses exageradas de sacanices, facadas nas costas e muitas figurantes com língua de porteira. A única coisa que vale a pena no meio desta salganhada toda?! A protagonista, que interpreta este argumento sem mudar uma vírgula... ou não fosse isto a sua vida.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Celdélia de sua graça


A minha avó ensinou-me que as borboletas brancas sao sinal de boas novas. E ensinou-me o que sao "boas novas" e "por obséquio" - que ela teimosamente insistia em dizer, mesmo que achassem que ela era doida. Deu-me a conhecer Confúcio, as coisas fantásticas que ele dizia e que ela citava muitas vezes.

A minha avó tinha 9 nomes. Celdélia Josefina eram os dois primeiros. Mesmo depois de 7 filhos, continuava um pau de virar tripas, pelo que o meu pai dizia amiúde "Celdélia Josefina come um bife e fica fina".  E eu e o meu irmao ríamos imenso.

A minha avó fazia torradas da fazenda, umas torradas tao, mas tao boas, que nunca vi ninguém fazer igual. A minha avó, que por ser avó tinha tempo e paciencia ás carradas, fazia tranças prefeitas e contava estórias longas e cheias de pormenores. De Macau, de África, do Brasil, do meu bisavô  militar e do meu avô bigodes. Dos gatos e da cabra que teve em África que comia cigarros e roía a palhinha das cadeiras. Dos mordomos de luvas brancas, do que perdeu na guerra (tudo e mais um bocadinho) e dos negócios falhados do meu avó. De como o meu bisavô roubou a minha bisavó aos pais, e de como a minha tetravó, de Viana do Castelo, lhe mandou dois baús cheios de pedras quando ela já em Lisboa lhe escreveu a pedir o enxoval.

A minha avó nunca me chamou Flora. Para ela eu era sempre Aninhas. Feitios. Flora veio do outro lado da família, do lado do meu pai e eu acho que ela levou a coisa a peito.

A minha avó era super educada, tinha um bocadinho a mania das grandezas e dava imensa importancia a coisas como berco e educacao. Uma vez, nunca mais me esqueço, fez-me uma bolsinha de mao em crochet para eu levar a uma festa de anos e comprou flores para eu oferecer á mae da minha amiga. As miúdas todas olharam espantadas para as flores e depois perguntaram para que era aquilo (a bolsa) e a única coisa que me ocorreu foi "para meter coisas lá dentro" e toca de mostrar orgulhosa um pacote de lenços.

A minha avó usava balandraus, uma espécie de vestidos compridos, largos e com padroes discretos. Mesmo em pleno Agosto, a minha avó nunca saía a rua sem collants - nao vou andar a mostrar as varizes, nao e?! E nunca esquecia o baton e os brincos. E pedia-me sempre "minha filha, por favor ve se a tua avó tem baton nos dentes".

A minha avó cozinhava muito bem. E tinha a mestria de saber aproveitar restos como ninguém. Com ela aprendi a fazer arroz chau-chau com tudo e mais alguma coisa.

A minha avó escrevia imensas cartas. E tinha a caligrafia mais bonita que alguma vez já vi. Por causa da minha avó eu ainda hoje mando postais de Natal, escritos e por correio.

A minha avo ensinou-me o significado de melancolia. Toda ela era um poço de recordaçoes e memórias que revivia vezes sem conta. Tantas vezes a encontrei de olhar parado no vazio, cigarro na ponta dos dedos e a boca entreaberta. Quando lhe perguntava o que tinha ela dizia-me que se alimentava de recordaçoes e saudades e que já tinha vivido tempo de mais.

A minha avó morreu e eu sinto que me falta um bocado enorme.




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