
Hoje de manhã, enquanto conduzia em direcção à ilha onde trabalho, lembrei-me dela, à porta da nossa escola. No seu casaco de pele de leopardo (que me há-de ficar na herança) o seu coque muito bem penteado, o baton vermelho e o cigarro na ponta dos dedos.
Os meus colegas perguntava com ar de espanto "é a tua avó?!" e eu respondia orgulhosamente que sim. A minha avó era diferente. Snob num sentido altivo mas não prejurativo. Sempre muito aprumada, sempre de baton quando sai à rua, só largou os cigarros porque um médico lhe disse que tinha um pulmão completamente inutilizado e outro a funcionar a menos de 50%.
Mãe de 7 filhos, avó de muitos netos, bisavó de outros tantos. A única bisneta que conhece pessoalmente é a minha filha. Foi um caso de paixão. A Kel começou a andar em casa dela, em Santos.
Já na altura a minha avó andava de bengala e de braço dado comigo ou com a minha mãe. Com pouco mais de um ano, a Kel refilava porque não podia andar de mão dada com a bisa na rua.
Lembro-me sobretudo do cheiro dela. Do tom de pele muito branco e do cabelo enorme, que sempre conheci cinzento. Do colar de pérolas com fecho trabalhado, que eu em criança lhe punha para trás do pescoço e ela puxava para a frente, enquanto me dizia "minha filha, usa-se assim!".
Da insistência, desde que nasci e até hoje, em me tratar por Aninhas, pois não gosta do meu outro nome. Do não gostar de areia, mas adorar olhar para o mar. Do ar nostálgico e melodramático que sempre teve. Do jarrão chinês, uma das poucas coisas que sobrou da infância passada em Macau, escondido no roupeiro, por receio que a pequena bisneta o partisse. Dos "filmes" do meu avô, que não conheci, mas que ela conta como ninguém.
Diz-me que vive de recordações e que já viveu anos a mais.
Já sei que mais logo, quando lhe ligar, vai chorar ao telefone. Vai falar-me das férias que passou connosco quando eu e o meu irmão éramos pequenos. De que quando se senta no seu sofá, revê a Kel a dar os primeiros passos.
Saudades. Muitas.
3 comentários:
Viste? Doeu? Não, pois não!
Fantástico texto, que deves ter escrito com o coração um metro fora da boca, de certeza. Queremos mais disto, dona Flô.
PS - Depois emprestas-me o leopardo, boa?
Muito bonito e tocante.
E porquê só telefonar?
Não dá para ir ter com a avó?
Beijinhos eldoradenhos.
Gaja...
A minha avó sempre foi uma senhora esbelta. Tem um estômago do tamanho de um berlinde e é um pisco a comer. Tudo isto para dizer que o leopardo mal me serve a mim, quanto mais a ti;-)
Beijo grande
JP,
Provavelmente fui eu que não me expliquei bem. Não é Santos em Lisboa. É Santos em São Paulo, Brasil. Portanto não dá :-(
Beijos
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