Novela (que podia ser mexicana) com um número infindável de episódios e protagonistas a mais, vendida em pacotes económicos aos países do leste europeu. Enredo muito intrincado, malfeitores qb, doses exageradas de sacanices, facadas nas costas e muitas figurantes com língua de porteira. A única coisa que vale a pena no meio desta salganhada toda?! A protagonista, que interpreta este argumento sem mudar uma vírgula... ou não fosse isto a sua vida.

sexta-feira, 9 de março de 2007

Desenho a negro

Chamava-se Inês, tinha a mesma idade que eu.
Usávamos batas aos quadradinhos, não me lembro de que cor (as fotos são a preto a branco, não dá para perceber).
Andávamos na mesma escola onde a minha filha anda hoje. Tínhamos três anos e pouco. E eu lembro-me.
Lembro-me de entrarmos à socapa na cozinha e tentarmos roubar bolachas antes do almoço. Bolachas de água e sal da Triunfo, daquelas quadradas que acho que já não há.
Invariavelmente, éramos apanhadas. Lembro-me da carita dela, emoldurada num chapéu de algodão, daqueles com elástico a prender debaixo do queixo. Não me lembro da cor do chapéu e, novamente, as fotografias a preto e branco não ajudam. Ela tinha o cabelo liso, cortado à tigela e uns olhos grandes.
Lembro-me que éramos amigas.
Um dia a Inês deixou de aparecer. A mãe continuava a levar o irmão da Inês à escola, mas a Inês nunca mais voltou. Com a curiosidade e inocência de crianças de três anos, perguntávamos à mãe da Inês porque é que ela não vinha à escola. Até que fomos proibidas de o fazer. A mãe da Inês chorava quando perguntávamos por ela. A minha mãe disse-me porque não era bonito fazê-lo: a Inês estava doente e a mãe dela ficava triste.

Lembro-me, como se fosse hoje, do dia em que nos explicaram o que tinha acontecido à Inês.

Sentaram-nos à volta de uma mesa, pegaram numa folha branca e num marcador preto e fizeram um desenho. De um cemitério. Lembro-me, como se fosse hoje, de nos dizerem “A Inês estava doente, morreu e está enterrada aqui.” E lembro-me de uma mão a fazer uma cruz no desenho do cemitério. A negro. Como se de um mapa de tesouro se tratasse.
Nada de anjinhos ou céu. Nada de grandes viagens ou sonos longos. Morreu. E está enterrada, debaixo da terra.
(Este desenho fui eu que fiz. É assim que me lembro dele)

Lembro-me de chegar a casa e chorar muito. Sentada num puff, a um canto do meu quarto. Não por perceber realmente o que se teria passado com a Inês, mas porque o negro do desenho me levou a entender que, fosse o que fosse, era mau. E tive a certeza que nunca mais veria a Inês.
A versão cor-de-rosa foi-me dada pela minha mãe. Mas cor-de-rosa em cima de negro não pega. Já não valia a pena. Por preocupação, a minha mãe comentou o caso com o meu pediatra. Não sem antes ter chamado tudo, menos santa, à iluminada da directora da escola (sim, foi a directora que nos fez aquela explicação tão adequada à nossa idade). O pediatra disse à minha mãe que nunca me iria esquecer.
Passados anos, confrontei a minha mãe com uma dúvida inquietante. Contei-lhe tudo o que me lembrava e perguntei-lhe se tinha acontecido mesmo. Não sabia se tinha sonhado com aquilo…
Efectivamente, a Inês morreu com três anos e pouco. E eu lembro-me… éramos amigas.

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